Era uma vez uma estante de histórias estáticas. Camadas de poeira se sobrepunham sobre as páginas amareladas e organismos microscópicos se alimentavam do sedentarismo de pilhas de romance e aventura. Em outro capítulo da vida, crianças, ainda que inconscientes de seu desejo, aspiravam ao colorido das aventuras infantis. A senhora que visitava a feira esperava pela visita dos trovadores e a mocinha tão carente sonhava com o cheiro do papel que nutria sua paixão.
A história de fazer os livros criarem asas e voarem começou modestamente. Nada de muita aventura, nem revoluções. As protagonistas só queriam dividir e difundir o prazer e o poder da leitura. Da biblioteca encorpada na residência para o consultório de fonoaudiologia, Josiane Mayr Bibas e Ângela Marques Duarte transportaram mudança, inspiração e esperança. Quem passava por lá tinha a liberdade de escolher um volume, folhear umas páginas e se apaixonar pela combinação das letras. Mas não era suficiente.
A dupla de amigas e colegas de profissão deu asas à imaginação que vinha sendo nutrida há algum tempo. “Estamos juntas há meio século”, contam em meio a gargalhadas. Cada uma a sua maneira, apaixonadas pelo prazer da leitura e militantes do poder transformador desse hábito. Não é à toa que no exercício da maternidade formaram consumidores vorazes de literatura. Na atuação em serviços de saúde, encontraram na ordem da grafia das palavras a cura para a desordem da fala. O consultório abrigava uma singela caixa recheada de volumes literários, mas uma virada de página levou a sala de espera ao capítulo final.
O que poderia ser um definitivo ponto final para a corrente de leitura foi um novo e bem-vindo parágrafo, que trouxe um enredo original para Jô e Ângela, quando as protagonistas encontraram uma aliada poderosa, Maria Luiza Mayr, administradora e cunhada de Jô. Sem consultório, mas com muita boa vontade, as três mosqueteiras embarcaram na aventura de espalhar obras pela cidade.
A Freguesia do Livro começou em 2011, quando instalaram uma Biblioteca Infantil na Vila Zumbi dos Palmares, em Colombo, na Região Metropolitana de Curitiba, e começaram a receber doações da sua rede de amigos. Porém, o que deveria se restringir a um projeto de incentivo à leitura na infância tomou maiores proporções. Com a chegada de títulos destinados ao público adulto, as empreendedoras sociais tiveram de repensar seu modelo de atuação.
A solução foi investir em mais pontos de leitura. Assim, surgiram as caixas de livro que hoje são marca registrada da ONG. Aliadas às ferramentas digitais, aproveitaram a internet para atrair pessoas e empresas interessadas em hospedar a ideia e outros para servirem de postos de coleta de doações que garantissem o fluxo contínuo de livros. Em 2012, lançaram o próprio site, onde se encontram as recomendações para doadores, interessados em arrecadar ou hospedar um ponto de leitura e outras formas de participação voluntária. As redes sociais digitais chegaram para facilitar a divulgação da ideia e o contato com colaboradores e beneficiários. Pronto: a rede de leitores estava formada, mas faltava a formalização e uma estratégia sólida para expansão da ideia.
É aí que entra o Projeto Legado. Neste capítulo da história, a Freguesia do Livro recebe o incentivo e o conhecimento jurídico que precisava para ter o registro formal e pensar mais longe. Integrante da primeira turma do Projeto Legado, obteve êxito entre as participantes e conquistou o Prêmio Cereja do Bolo 2013, recebendo a quantia de R$ 10 mil para aplicação no projeto social e expansão de impacto. A visão ampliada pelo Legado fez a Freguesia enxergar além das fronteiras: hoje a meta é entregar uma caixa de livros no Acre! Tarefa árdua? Pode ser, mas a trajetória está traçada.
O dia a dia do movimento literário é também de muito trabalho braçal. Funciona assim: as voluntárias coletam as doações nos postos de arrecadação e levam para a biblioteca na casa de Maria Luiza, onde funciona uma espécie de quartel general do trio. “Eu adoro ficar aqui; fico horas limpando os livros, catalogando…sou até capaz de dizer o que tem e onde está”, conta Maria Luiza com o sorriso nos olhos típico de quem está satisfeito com o trabalho que faz. Nem tudo que chega às mãos do projeto é aceito porque a seleção é criteriosa. “Nós entendemos que o bom estado de conservação de um livro está associado ao prazer de leitura. Ninguém gosta de ler um livro danificado, com as páginas amareladas”, enfatiza Ângela.
Além do estado de conservação, são considerados apenas livros editados após 1980. No caso das enciclopédias, buscando a atualização das informações, só são aceitas aquelas publicadas após 2000. Revistas semanais, livros didáticos e apostilas não entram no acervo. As doações que são consideradas sem utilidade de leitura são devidamente encaminhadas ao serviço de reciclagem de papel. Parte das doações é ainda encaminhada para restauração e os mais antigos são trocados em sebos.
Após selecionados e limpos, os donativos recebem um carimbo de identificação feito com muita objetividade e muito zelo: “Este livro faz parte de uma corrente literária, depois de ler, devolva ou passe adiante”. As coordenadoras têm ainda o cuidado de catalogar os livros por gênero e destiná-los de acordo com o público-alvo do ponto de leitura. Uma faculdade de comunicação, por exemplo, adora receber volumes sobre publicidade, jornalismo e campanhas eleitorais; já as escolas preferem os livros infantis. A prioridade, no entanto, é atingir pessoas com dificuldade de acesso à literatura e contribuir com a democratização.
Para que os planos de atingir mais leitores sejam concretizados, uma série de iniciativas e parcerias tem sido remodelada. Exemplo disso é a Carona Literária. “Sempre que uma cidade demonstra o interesse de sediar nossos livros, ativamos nossa rede em busca de alguém que esteja indo para aquela localidade e leve os volumes até os leitores”, conta Josiane. Foi assim que a organização iniciou a parceria com as empresas de ônibus rodoviário, aproveitando o itinerário dos motoristas e espalhando cultura pelo caminho.
Para a Freguesia do Livro o “felizes para sempre” é sempre reinventado. Os volumes não param nas estantes, mas circulam em novas mãos e são revisados sempre por olhares inéditos. A palavra de ordem é circular. Talvez liberdade também seja uma boa palavra, porque tanto os livros quanto seus apreciadores devem ser livres. Livres para doar, mas também para se apegar àqueles títulos de estimação. Livres para escolher um livro sem o compromisso de devolvê-lo em determinada data, mas também para passar adiante e garantir que mais e mais pessoas tenham acesso ao conhecimento e ao hábito de leitura. Livros livres. Essa é a ideia. Afinal, qual é o papel do livro se não ser lido?
Texto: Ester Athanásio
Vídeo: Victor Sant’Ana e Ester Athanásio